sábado, 21 de março de 2020

AMOR E CONCILIAÇÃO


AMOR E CONCILIAÇÃO[1]
(Re)conciliação é momento de amor no desenvolvimento dos elevados valores da vida.
 A existência física de todos os indivíduos é assinalada por sofrimentos e lutas que não cessam. Sai-se de um estágio difícil e inicia-se outro, defrontando-se novas formas de experiências, nas quais o desalento e a dificuldade parecem unir-se para obstaculizar a marcha do viandante.
Aqui é alguém que deserta da companhia, ali é a trama da ignorância travestida de perversidade, conspirando contra a paz, mais adiante é a infâmia urdindo dissabores sem conto. E o viajante do carreiro carnal, também desestruturado emocionalmente e sem os requisitos espirituais para compreender as ocorrências necessárias, acumula amarguras e decepções, que se transformam em ressentimentos e ódios perturbadores.
Ignorando a legitimidade do amor, por não o haver ainda vivenciado, acredita que qualquer tentativa de insculpi-lo no íntimo redundará inútil, senão perniciosa, em razão de, aparentemente, não haver campo para a sua vigência.
Acumulando fel e desar, quem assim se comporta recua ante as possibilidades de expressar afeto, desconfiando das manifestações dessa natureza que lhe são direcionadas.
Sem dar-se conta torna-se pessimista, em relação às demais pessoas, à sociedade, à vida, tornando-se amargo e desinteressado de relacionamentos mais profundos, receando experimentar sofrimentos mais graves.
O amor, no entanto, é poderoso elixir de longa vida, que restitui as energias gastas e as esperanças fanadas.
Os acontecimentos nefastos que são relacionados, de forma alguma defluem da sua natureza, sendo antes fruto do primarismo do sentimento humano que se apresenta em forma inicial de crescimento, direcionando-se no rumo da afetividade.
Porque ainda asselvajado, não possui uma ética de comportamento que estabeleça o código de como proceder em relação ao outro, àquele a quem se dirige, permanecendo instável, interesseiro, amorfo, não definido. A me-dida que conquista as paisagens do sentimento, altera a constituição e passa a expressar-se de maneira diferente, propiciadora de confiança, estabelecendo elos de legitimidade com que se aformoseia e se encanta.
O amor jamais causa dissabor, nunca decepciona nem se desaponta.
Isso porque nada espera em resposta, evitando impor-se como manifestação egoísta ou tornando-se cediço em nome da afeição, quando a sua deva ser a atitude de coerência com a realidade.
Eis por que, no amor, uma das maneiras mais graves de manifestar-se será quando convidado a negar algo que não corresponde à legitimidade dos acontecimentos ou simplesmente não deva ser concedido. Pode chocar; jamais iludir, não temendo a reação daquele a quem se dirige e que, talvez, não lhe compreenda a atitude veraz, dignificadora.
O amor, também, mesmo nos momentos mais ásperos, jamais interrompe a sua ação, permanecendo integral, embora não manifesto de maneira objetiva, sensorial.
Nessa atitude silenciosa e quase desconhecida emite energias de alta potência que vitalizam o ser amado, que lhe ignora a procedência.
O amor é conciliador, no entanto não se acumplicia com aquilo que é incorreto.
Possui o dom de perdoar, olvidando todo o mal apenas para recordar-se de todo o bem que pode vislumbrar em qualquer ação ou pessoa.
Reconcilia-se com o adversário, aquele que se fez inimigo e se comprazia em manter uma atitude hostil, responsável por situações desagradáveis e prejudiciais. Não cobra estipêndios morais, a fim de estabelecer a paz.
Expressa a verdadeira conciliação, auxiliando o incompreendido ou malsinado a conviver em harmonia com aquele que o infelicitou ou lhe gerou problemas, não os recordando, tampouco solicitando esclarecimentos e justificações, aliás, muito do agrado do egoísmo doentio.
A conciliação, que é filha direta do perdão e da compaixão, faculta inusual júbilo do sentimento, que tudo apaga e esquece, compreendendo que aqueles comportamentos anteriores eram resultado da ignorância e das experiências iniciais do processo evolutivo.
Reconciliado no mundo interior, aquele que ama esparge jovialidade, modificando a aparência física que retrata o estado emocional interno, assim catalisando simpatia e saúde espiritual.
Essa conquista de reconciliação não espera, necessariamente, o ressarcimento, e porque nada aguarda nunca se decepciona quando ainda permanece incompreendida ou não é aceita pelo outro, o seu opositor.
Não é importante que aquele a quem seja dirigida agasalhe-a, considerando-a oportunidade adequada para o estabelecimento da paz. O seu valor consiste no que significa para quem a desenvolve, pouco lhe importando os resultados que disso advenham.
O amor é rico de conciliação, porque sabe que essa é a atitude melhor, que somente pode produzir frutos sazonados, e que um dia esplenderá em um hino de solidariedade e de paz entre todos os seres.
Por extensão, confia no poder dessa força intangível, mas que movimenta o Universo, sabendo inconscientemente que, cedo ou tarde, a sua doação retornará pelos movimentos especiais de fraternidade, entendimento e amizade.
Não seja estranhável se a pessoa que deseja realmente amar envolve-se em problemas e conflitos. Por não saber ainda os mecanismos sutis do amor, procura expressá-lo nas ocasiões inadequadas às pessoas imaturas e despreparadas, recebendo de volta complicações e dúvidas ultrajantes.
É compreensível que tal aconteça se for considerado que o amor exterioriza-se no emaranhado dos relacionamentos, interligando pessoas de temperamentos diversos, de diferentes culturas e condutas, não as julgando ou as condenando, não concordando ou deixando de anuir com a sua forma de ser.
Aprende-se a amar. O sentimento surge espontâneo, porém desenvolve-se pela experiência, mediante a sabedoria e convivência com os demais seres humanos.
Os relacionamentos não são muito fáceis, porque cada um tem a sua própria historiografia escrita na sua maneira de ser.
Dificilmente dois indivíduos respondem da mesma forma aos apelos do amor, seguindo, não poucas vezes, veredas diferentes.
O amor os entende e avança ao seu lado até onde é possível, prosseguindo não conforme agradaria, porém consoante lhe convém.
Esse é um dos momentos mágicos do amor e da conciliação: saber onde parar, quando prosseguir e como fazê-lo
O Mestre do amor referiu-se com imensa propriedade: Reconcilia-te com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele.
Para que haja essa (re)conciliação é necessário que o amor impere no país dos sentimentos, oferecendo paz e perdão ao ofensor, sem o que o gesto de busca e encontro perderia o seu significado, por manter apenas uma posição exterior.

(Re)conciliação é momento de amor em pleno estágio de desenvolvimento dos elevados valores da vida.


[1] Fonte: Livro – Garimpo de Amor – ditado do Espírito Joana de Ângelis, psicografia de Divaldo Pereira Franco, Ed LEAL,

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A FICHA


A FICHA[1]

João Mateus, distinto pregador do Evangelho, na noite em que atingiu meio século de idade no corpo físico, depois de orar enternecidamente com os amigos, foi deitar-se para um merecido descanso. Sonhou que alcançava as portas da Vida Espiritual e, deslumbrado com a leveza de que se via possuído, intentava alçar-se, para melhor desfrutar a excelsitude do Paraíso, quando um funcionário de Passagem Celeste se aproximou, a lembrar-lhe solícito.
"João para evitar qualquer surpresa desagradável no avanço, convém uma vista d´olhos em sua ficha...”.
E o viajante recebeu primoroso documento, em cuja face leu espantadiço:
·         João Mateus.
·         Renascimento na Terra em 1904.
·         Berço manso.
·         Pais carinhosos e amigos.
·         Inteligência preciosa.
·         Cérebro claro.
·         Instrução digna.
·         Bons livros.
·         Juventude folgada.
·         Boa saúde.
·         Invejável noção de conforto.
·         Sono calmo.
·         Excelente apetite.
·         Seguro abrigo doméstico.
·         Constante proteção espiritual.
·         Nunca sofreu acidentes de importância.
·         Aos 20 anos de idade, empregou-se no comércio.
·         Casou-se aos 25 anos, em regime de escravização da mulher.
·         Católico romano até os 26.
·         Presenciou, sem maior atenção, 672 missas.
·         Aos 27 de idade, transferiu-se para as fileiras espíritas.
·         Compareceu a 2.195 sessões de Espiritismo, sob a invocação de Jesus.
·         Realizou 1.602 palestras e pregações doutrinárias.
·         Escreve cartas e páginas comoventes.
·         Notável narrador.
·         Polemista cauteloso.
·         Quatro filhos.
·         Boa mesa em casa.
·         Não encontra tempo para auxiliar os filhos na procura do Cristo.
·         Efetuou 106 viagens de repouso e distração.
·         Grande intolerância para com os vizinhos.
·         Refratário a qualquer mudança de hábitos para a prestação de serviços aos outros.
·         Nunca percebe se ofende ao próximo, através de sua conduta, mas revela extrema suscetibilidade ante a conduta alheia.
·         Relaciona-se tão somente com amigos do mesmo nível.
·         Sofre horror às complicações da vida social, embora destaque incessantemente o imperativo da fraternidade entre os homens.
·         Sabe defender-se com esmero em qualquer problema difícil.
·         Além dos recursos naturais que lhe renderam respeitável posição e expressivo reconforto doméstico, sob o constante amparo de Jesus, através de múltiplos mensageiros, conserva bens imóveis no valor de Cr$ 600.000,00 e guarda em conta de lucro particular a importância de Cr$ 302.000,00.
·         Para Jesus, que o procurou na pessoa de mendigos, de necessitados e doentes, deu durante toda a vida 90 centavos.
·         Para cooperar no apostolado do Cristo, já ofereceu 12 cruzeiros em obras de assistência social.
DÉBITO
Quando ia ler o item referente às próprias dívidas, fortemente impressionado, João acordou.
Era manhãzinha...
À noite, bem humorado, reuniu-se aos companheiros, relatando-lhes a ocorrência.
Estava transformado, dizia. O sonho modificara-lhes o modo de pensar. Consagrar-se-ia doravante ao trabalho mais vivo no movimento espírita: pretendia renovar-se por dentro, reuniria agora palavra e ação.
Para isso, achava-se disposto a colaborar substancialmente na construção de um lar, destinado à recuperação de crianças desabrigadas que, desde muito, desejava socorrer.
A experiência daquela noite inesquecível era, decerto, um aviso precioso. E, sorridente, despediu-se dos irmãos de ideal, solicitando-lhes novo reencontro para o dia seguinte. Esperava assentar as bases da obra que se propunha levar a efeito.
Contudo, na noite imediata, quando os amigos lhe bateram à porta, vitimado por um acidente das coronárias, João Mateus estava morto.





[1] Livro: Contos e Apólogos, ditado pelo Espírito Irmão X, psicografia de Francisco Cândido Xavier edição FEB.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Estudando Missionário da Luz - Influenciação


INFLUENCIAÇÃO[1]
Notava, agora, a diferenciação do ambiente. Para nós outros, os desencarnados, a atmosfera interior impregnava-se de elementos balsâmicos, regeneradores. Cá fora, porém, o ar pesava. Acentuara-se-me, sobremaneira, a hipersensibilidade, diante das emanações grosseiras da rua. As lâmpadas elétricas se semelhavam a globos pequeninos, de luz muito pobre, isolados em sombra espessa.
Aspirando as novas correntes de ar, observava a diferença indefinível.
O oxigênio parecia tocado de magnetismo menos agradável.
Compreendi, uma vez mais, a sublimidade da oração e do serviço da Espiritualidade superior, na intimidade das criaturas.
A prece, a meditação elevada, o pensamento edificante, refundem a atmosfera, purificando-a.
O instrutor interrompeu-me as íntimas considerações, exclamando:
- A modificação, evidentemente, é inexprimível. Entre as vibrações harmoniosas da paisagem interior, iluminada pela oração, e a via pública, repleta de emanações inferiores, há diferenças singulares. O pensamento elevado santifica a atmosfera em torno e possui propriedades elétricas que o homem comum está longe de imaginar. A rua, no entanto, é avelhantada repositório de vibrações antagônicas, em meio de som brios materiais psíquicos e perigosas bactérias de varia da procedência, em vista de a maioria dos transeuntes lançarem em circulação, incessantemente, não só as colônias imensas de micróbios diversos, mas também os maus pensamentos de toda ordem.
Enquanto ponderava o ensinamento ouvido, reparei que muitos agrupamentos de entidades infelizes e inquietas se postavam nas cercanias. Faziam-se ouvir, através das conversações mais interessantes e pitorescas; todavia, desarrazoadas e impróprias, nas menores expressões.
Alexandre indicou-me pequeno grupo de desencarnados, que me pareceram em desequilíbrio profundo, e falou:
- Aqueles amigos constituem a coorte quase permanente dos nossos companheiros encarnados, que voltam agora ao ninho doméstico.
- Quê? - indaguei involuntariamente.
- Sim - acrescentou o orientador cuidadoso, os infelizes não têm permissão para ingressar aqui, em sessões especializadas, como a desta noite. Nas reuniões dedicadas à assistência geral, podem comparecer. Hoje, entretanto, necessitávamos socorrer os amigos para que o vampirismo de que são vítimas seja atenuado em suas conseqüências prejudiciais.
Impressionou-me a excelência de orientação. Tudo, naqueles trabalhos, obedecia à ordem preestabelecida. Tudo estava calculado, programado, previsto.
- Agora - prosseguiu Alexandre, bem humorado -, repare na saída de nossos colaboradores terrestres. Observe a maneira pela qual voltam, instintivamente, aos braços das entidades ignorantes que os exploram.
Fiquei atento. Dispunham-se todos a deixar o recinto, tranqüilamente.
A porta, junto de nós; começaram as despedidas entre eles: - Graças a Deus! - exclamou uma senhora de maneiras delicadas - fizemos nossas preces em paz, com imenso proveito.
- Como me sinto melhor! - comentou uma das amigas mais idosas - a sessão foi um alívio. Trazia o espírito sobrecarregado de preocupações, mas, agora, sinto-me reconfortada, feliz. Acredito que me retiraram pesadas nuvens do coração. Ouvindo as orações e partilhando as tentativas de desenvolvimento para o serviço ao próximo, grande é o socorro que recebemos! Ah! Como Jesus é generoso.
Um cavalheiro de porte distinto adiantou-se, observando:
- O Espiritismo é o nosso conforto. Os compromissos que temos são muito grandes, diante da verdade. E não é sem razão que o Senhor nos colocou nas mãos a lâmpada sublime da fé. Em torno de nossos passos, choram os sofredores, desviam-se os ignorantes no extenso caminho do mal. Dos Céus chegam até nós ferramentas de trabalho. É necessário servir, intensamente, transformando-nos em colaboradores fiéis da Revelação Nova!
- Exatamente! - concordou uma das interlocutoras, comovida coma exortação - temos grandes obrigações, não devemos perder tempo. A doutrina confortadora dos Espíritos é o nosso tesouro de luz e consolação. Oh! Meus amigos; como necessitamos trabalhar!
Jesus chama-nos ao serviço, é imprescindível atender.
Reconhecendo os característicos de gratidão e louvor da palestra, expressei sincera admiração, exaltando a fidelidade dos cooperadores da casa. Demonstravam-se fervorosos na fé, confiantes no futuro e interessados na extensão dos benefícios divinos, considerando as dores e necessidades dos semelhantes.
Vendo-me as expressões encomiásticas, Alexandre observou, sorrindo:
- Não se impressione. O problema não é de entusiasmo e sim de esforço persistente. Não podemos dispensar as soluções vagarosas.
Raros amigos conseguem guardar uniformidade de emoção e idealismo nas edificações espirituais. Vai para nove anos, com algumas interrupções, que me encontro em concurso ativo nesta casa e, mensalmente, vejo desfilar aqui as promessas novas e os votos de serviço. Ao primeiro embate com as necessidades reais do trabalho, reduzido número de companheiros permanece fiel à própria consciência. Nas horas calmas, grandes louvores, nos momentos difíceis, disfarçadas deserções, a pretexto de incompreensão alheia. Sou forçado a dizer que, na maioria dos casos, nossos irmãos são prestativos e caridosos como próximo, em se tratando das necessidades materiais, mas quase sempre continuam sendo menos bons para si mesmos, por se esquecerem de aplicação da luz evangélica à vida prática. Prometem excessivamente com as palavras; todavia, operam pouco no campo dos sentimentos.
Com exceções, irritam-se ao primeiro contacto com a luta mais áspera, após reafirmarem os mais sadios propósitos de renovação e, comumente, voltando cada semana ao núcleo de preces, estão nas mesmas condições, requisitando conforto e auxílio exterior. Não é com facilidade que cumprem a promessa de cooperação com o Cristo, em si próprios, base fundamental da verdadeira iluminação. Porque Alexandre silenciara, observei atenciosamente os circunstantes. Ainda se achavam todos eles, os encarnados, irradiando alegria e paz, colhidas na rápida convivência com os benfeitores invisíveis. Da fronte de cada um, emanavam raios de espiritualidade surpreendente.
Num gesto significativo, o instrutor esclareceu: - Eles ainda se encontram sob as irradiações do banho de luz a que se submeteram, através do serviço espiritual com a oração. Se conseguissem manter semelhante estado mental, pondo em prática as regras de perfeição que aprendem, comentam e ensinam fácil lhes seria atingir positivamente o nível superior da vida; entretanto, André, como nós, que em outros tempos fomos inexperientes e frágeis, eles, agora, ainda o são também. Cada hábito menos digno, adquirido pela alma no curso incessante dos séculos, funciona qual entidade viva, no universo de sentimentos de cada um de nós, compelindo-nos às regiões perturbadas e oferecendo elementos de ligação com os infelizes que se encontram em nível inferior.
Examine os nossos amigos encarnados, com bastante atenção.
Contemplei-os com interesse. Trocavam gentilmente as últimas saudações da noite, demonstrando luminosa felicidade.
- Acompanhemos o grupo, onde se encontra o nosso irmão mais fortemente atacado pelas inquietações do sexo - Exclamou o orientador, proporcionando-me valiosa experiência.
O rapaz, em companhia de uma senhora idosa e de uma jovem, que logo percebi serem sua mãe e irmã, punha-se de regresso ao lar.
Movimentamo-nos, seguindo-os de perto. Alguns metros, além do recinto, onde se reuniam os companheiros de luta, o ambiente geral da via pública tornava-se ainda mais pesado.
Três entidades de sombrio aspecto, absolutamente cegas para coma nossa presença, em vista do baixo padrão vibratório de suas percepções acercaram-se do trio sob nossa observação.
Encostou-se uma delas à senhora idosa e, instantaneamente, reparei que a sua fronte se tornava opaca, estranhamente obscura.
Seu semblante modificou-se. Desapareceu-Lhe o júbilo irradiante, dando lugar aos sinais de preocupação forte. Transfigurara-se de maneira completa.
- Oh! Meus filhos - exclamou a genitora, que parecia paciente e bondosa -, por que motivo somos tão diferentes no decurso do trabalho espiritual? Quisera possuir, ao retirar-me de nossas orações coletivas, o mesmo bom ânimo, a mesma paz íntima. Isso, porém, não acontece. Ao retomar o caminho da luta prática, sinto que a essência das preleções evangélicas persevera dentro de mim, mas de modo vago, sem aquela nitidez dos primeiros minutos.
Esforço-me sinceramente para manter a continuação do mesmo estado d’alma; entretanto, algo me falta, que não sei definir com precisão.
Nesse momento, as duas outras entidades, que ainda se mantinham distanciadas, agarraram-se comodamente aos braços do rapaz, que ofereceu aos meus olhos o mesmo fenômeno. Embaciou-se-lhe a claridade mental e duas rugas de aflição e desalento vincaram-Lhe as faces, que perderam aquele halo de alegria luminosa e confiante. Foi então que ele respondeu, em voz pausada e triste:
- É verdade, mamãe. Enormes são as nossas imperfeições.Creia que a minha situação é pior. A senhora experimenta ansiedade, amargura, melancolia... É bem pouco para quem, como eu, me sente vítima dos maus pensamentos. Casei-me ha menos de oito meses e, não obstante o devotamento de minha esposa; tenho o coração, por vezes, repleto de tentações descabidas. Pergunto a mim mesmo a razão de tais idéias estranhas e, francamente, não posso responder. A invencível atração para os ambientes malignos confunde-me o espírito, que sinto inclinado ao bem e à retidão de proceder.
- Quem sabe, mano, está você sob a influenciação de entidades menos esclarecidas? - considerou a jovem, com boas maneiras.
- Sim - suspirou o rapaz -, por isso mesmo, venho tentando o desenvolvimento da mediunidade, a fim de localizar a causa de semelhante situação.
Nesse instante, o orientador murmurou desveladamente: - Ajudemos a este amigo através da conversação. Sem perda de tempo, colocou a destra na fronte da menina, mantendo-a sob vigoroso influxo magnético e transmitindo-lhe suas idéias generosas.
Reparei que aquela mão protetora, ao tocar os cabelos encaracolados da jovem, expedia luminosas chispas, somente perceptíveis ao meu olhar. A menina; a seu turno pareceu mais nobre e mais digna em sua expressão quase infantil e respondeu firmemente:
- Neste caso, concordo em que o desenvolvimento mediúnico deve ser a última solução, porque antes de enfrentar os inimigos, filhos da ignorância, deveríamos armar o coração com a luz do amor e da sabedoria.
Se você descobrisse perseguidores invisíveis, em torno de suas atividades, como beneficiá-los cristãmente, sem a necessária preparação espiritual?
A reação educativa contra o mal é sempre um dever nosso, mas antes de cogitar dum desenvolvimento psíquico, que seria talvez prematuro, deveremos procurar a elevação de nossas idéias e sentimentos. Não poderíamos contar com uma boa mediunidade sem a consolidação dos nossos bons propósitos; e para sermos úteis, nos reinos do Espírito, cabe-nos aprender, em primeiro lugar, a viver espiritualmente, embora estejamos ainda na carne.
A resposta, que constituíra para mim valiosa surpresa, não provocou maior interesse em ambos os interlocutores, quase neutralizados pela atuação dos vampiros habituais.
Mãe e filho deixavam perceber funda contrariedade, em face das definições ouvidas. A palavra da menina, cheia de verdadeira luz, desconcertava-os.
- Não tem você bastante idade, minha filha - exclamou, contrafeita, a velha genitora -, não pode, pois, opinar neste assunto.
E como boa cultivadora de sofrimentos antigos, acentuou:
- Quando você atravessar os caminhos que meus pés já cruzaram, quando vierem às desilusões sem esperança, então observará como é difícil manter a paz e a luz no coração!
- E se algum dia - falou o rapaz, melancólico – experimentar as lutas que já conheço, verá que tenho motivos de queixa contra a sorte e que não me sobram outros recursos senão permanecer no círculo das indecisões que me assaltam. Faço quanto posso por desvencilhar-me das idéias sombrias e vivo a combater inesperadas tentações; no entanto, sinto-me longe da libertação espiritual necessária. Não me falta vontade, mas...
Alexandre, que havia retirado a destra de sobre a fronte da jovem, informou, atendendo-me à perplexidade:
- O amigo que se uniu à nossa irmã foi seu marido terrestre, homem que não desenvolveu as possibilidades espirituais e que viveu em tremendo egoísmo doméstico. Quanto aos dois infelizes, que se apegam tão fortemente ao rapaz, são dois companheiros, ignorantes e perturbados, que ele adquiriu em contacto com o meretrício.
Diante do meu espanto, o instrutor prosseguiu, explicando:
- O ex-esposo não concebeu o matrimônio senão como união corporal para atender conveniências vulgares da experiência humana e, em vista de haver passado o tempo de aprendizado terreno sem ideais enobrecedores, interessados em fruir todas as gratificações dos sentidos, não se sente com bastante força para abandonar o círculo doméstico, onde a companheira, por sua vez, somente agora, depois da desencarnação dele, começa a preocupar-se com os problemas concernentes à vida espiritual. Quanto ao rapaz, de leviandade em leviandade, criou fortes laços com certas entidades ainda atoladas no pântano de sensações do meretrício, das quais se destacam, por mais perseverantes, as duas criaturas que ora se lhe agarram, quase que integralmente sintonizadas com o seu campo de magnetismo pessoal. O pobrezinho não se apercebeu dos perigos que o defrontavam, e tornou-se a presa inconsciente de afeiçoados que Lhe são invisíveis, tão fracos e viciados quanto ele próprio.
- E não haverá recurso para libertá-los? Indaguei, emocionado.
O orientador sorriu paternalmente e considerou: - Mas quem deverá romper as algemas, senão eles mesmos? Nunca lhes faltou o auxílio exterior de nossa amizade permanente; no entanto, eles próprios alimentam-se uns aos outros, no terreno das sensações sutis, absolutamente imponderáveis para os que lhes não possam sondar o mecanismo íntimo. É inegável que procuram, agora, os elementos de libertação. Aproximam-se da fonte de esclarecimento elevado, sentem-se cansados da situação e experimentam, efetivamente, o desejo de vida nova; contudo, esse desejo é mais dos lábios que do coração, por constituir aspiração muito vaga, quase nula. Se, de fato, cultivassem a resolução positiva, transformariam suas forças pessoais, tornando-as determinantes, no domínio da ação regeneradora. Esperam, porém, por milagres inadmissíveis e renunciam às energias próprias, únicas alavancas da realização.
- Mas não poderíamos provocar a retirada dos vampiros inconscientes? - perguntei.
- Os interessados - explicou Alexandre, a sorrir - forçariam, por sua vez, à volta deles. Já se fez a tentativa que você lembrou, no propósito de beneficiá-los. De modo indireto, mas a nossa irmã se declarou demasiadamente saudosa do companheiro e o nosso amigo afirmou, intimamente, sentir-se menos homem, levando humildade à conta de covardia e tomando o desapego aos impulsos inferiores por tédio destruidor. Tanto expediram reclamações mentais que as suas atividades interiores constituíram verdadeiras invocações, e, em vista do vigoroso magnetismo do desejo constantemente alimentado, agregaram-se-lhes, de novo, os companheiros infelizes.
- Mas vivem assim imantados uns aos outros, em todos os lugares? - indaguei.
- Quase sempre. Satisfaz-se, mutuamente, na permuta contínua das emoções e impressões mais íntimas.
Preocupado em fazer algum bem, ponderei:
- Quem sabe poderíamos conduzir estas entidades ao devido fortalecimento? Não será razoável doutriná-las, incentivando-as ao equilíbrio e ao respeito próprio?
- Semelhante recurso - falou Alexandre, complacente – não foi esquecido. Essa providência vem sendo efetuada com a perseverança e o método precisos. Todavia, tratando-se de um caso em que os encarnados se converteram em poderosos ímãs de atração, a medida exige tempo e tolerância fraternal. Temos grande número de trabalhadores, consagrados a esse mister, em nosso plano, e aguardamos que a semeadura de ensinamentos dê seus frutos. De qual quer modo, esteja convicto de que toda a assistência tem sido prestada aos amigos sob nossa observação. Se ainda não avançaram, todos eles, no terreno da espiritualidade elevada, isto só se verifica em razão da fraqueza e da ignorância a que vivem voluntariamente escravizados. Colhem o que semeiam.
Nesse instante, fixamos novamente a atenção na palestra que se desdobrava:
- Faço o que posso - repetia o rapaz, em desalento -, entretanto, não consigo obter a tranqüilidade interior.
- Ocorre comigo o mesmo fato - observava a genitora, em tom triste. - Minhas únicas melhoras se verificam por ocasião de nossas preces coletivas. Em seguida, as piores emoções me assaltam o espírito. Vivo sem paz, sem apoio. Oh! Meus filhos, é cruel rolar assim, pelo mundo, como náufrago sem orientação!
- Compreendo-a, mamãe - tornou o filho, como que satisfeito por alimentar as impressões nocivas que lhe ocupavam a mente -, compreendo-a, porque as tentações me transformam a vida num cipoal de sombras espessas. Não sei mais que fazer para resistir aos pensamentos amargos. Ai de nós, se o Espiritismo não houvesse chegado aos nossos destinos como sagrada fonte de sublimes consolações!
Nesse momento, Alexandre colocou novamente a destra sobre a fronte da jovem, que Lhe traduziu o pensamento, em tom de respeito e carinho:
- Concordo em que o Espiritismo é nosso manancial de consolo, mas não posso esquecer que temos na Doutrina a bendita escola de preparação. Se permanecermos arraigados às exigências de conforto, talvez venhamos a olvidar as obrigações do trabalho.
Creio que os instrutores da verdade espiritual desejam, antes de tudo, a nossa renovação íntima, para a vida superior. Se apenas buscarmos consolação, sem adquirir fortaleza, não passaremos de crianças espirituais.
Se procurarmos a companhia de orientadores benevolentes, tão-só para o gozo de vantagens pessoais, onde estará o aprendizado?
Acaso não permanecemos aqui na Terra, em lição?
Teríamos recebido o corpo, ao renascer, apenas para repousar?
É incrível que os nossos amigos da esfera superior nos venham suprimir a possibilidade de caminhar por nós mesmos, usando os próprios pés. Naturalmente, não nos querem os benfeitores do Além para eternos necessitados da casa de Deus e, sim, para companheiros dos gloriosos serviços do bem, tão generosos, fortes, sábios e felizes quanto eles já o são. E modificando a inflexão de voz, desejosa de demonstrar a ternura filial que lhe vibrava n’alma, acentuou:
- Mamãe sabe como lhe quero bem, mas alguma coisa, no fundo da consciência, não me permite comentar as nossas necessidades senão assim, ajustando-me aos elevados ensinamentos que a Doutrina nos gravou no coração. Não posso compreender Cristianismo sem a nossa integração prática nos exemplos do Cristo.
Em virtude de o instrutor haver interrompido a operação magnética e porque me encontrasse perplexo ante a facilidade com que a menina lhe recebia os pensamentos, quando observara tanta complexidade nos serviços de psicografia, expus ao orientador amigo as indagações que me assaltavam o espírito.
Sem titubear, Alexandre explicou:
- Aqui, André, observa você o trabalho simples da transmissão mental e não pode esquecer que o intercâmbio do pensamento é movimento livre no Universo. Desencarnados e encarnados, em todos os setores de atividade terrestre, vivem na mais ampla permuta de idéias. Cada mente é um verdadeiro mundo de emissão e recepção e cada qual atrai os que se lhe assemelham. Os tristes agradam aos tristes, os ignorantes se reúnem, os criminosos comungam a mesma esfera, os bons estabelecem laços recíprocos de trabalho e realização. Aqui temos o fenômeno intuitivo, que, com maior ou menor intensidade, é comum a todas as criaturas, não só no plano construtivo, mas também no círculo de expressões menos elevadas. Temos, sob nossos olhos, uma velha irmã e seu filho maior; completamente ambientados na exploração inferior de amigos desencarnados, presas de ignorância e enfermidade, estabelecendo perfeito comércio de vibrações inferiores.
Falam sob a determinação direta dos vampiros infelizes, transformados em hóspedes efetivos do continente de suas possibilidades fisicopsíquicas.
Permanece também sob nossa análise uma jovem que, presentemente, atingiu dezesseis anos de nova existência terrestre.
Suas disposições, contudo, são bastante diversas. Ela consegue receber nossos pensamentos e traduzi-los em linguagem edificante.
Não está propriamente em serviço técnico da mediunidade, mas no abençoado trabalho de espiritualização.
E indicando a mocinha, cercada de maravilhoso halo de luz, acrescentou:
- Conserva, ainda, o seu vaso orgânico na mesma pureza com que o recebeu dos benfeitores que lhe prepararam a presente reencarnação. Ainda não foi conduzida ao plano de emoções mais fortes, e as suas possibilidades de recepção, no domínio intuitivo, conservam-se claras e maleáveis. Suas células ainda se encontram absolutamente livres de influências tóxicas; seus órgãos vocais, por enquanto, não foram viciados pela maledicência, pela revolta, pela hipocrisia; seus centros de sensibilidade não sofreram desvios, até agora; seu sistema nervoso goza de harmonia invejável, e o seu coração, envolvido em bons sentimentos, comunga com a beleza das verdades eternas, através da crença sincera e consoladora.
E, além disso, não tendo débitos muito graves do pretérito, condição que a isenta do contacto com as entidades perversas que se movimentam na sombra, pode refletir com exatidão os nossos pensamentos mais íntimos. Vivendo muito mais pelo espírito, nas atuais condições em que se encontra, basta a permuta magnética para que nos traduza as idéias essenciais.
- Isto significa - perguntei - que esta jovem é bastante pura e que continuará com semelhantes facilidades, em toda a existência?
Alexandre sorriu e observou:
- Não tanto. Ela ainda conserva os benefícios que trouxe do plano espiritual e as cartas da felicidade ainda permanecem em suas mãos para extrair as melhores vantagens no jogo da vida, mas dependerá dela o ganhar ou perder, futuramente. A consciência é livre.
- Então - continuei perguntando - não seria difícil prepararem-se todas as criaturas para receberem a influenciação superior?
- De modo algum - esclareceu ele - todas as almas retas, dentro do espírito de serviço e de equilíbrio, podem comungar perfeitamente com os mensageiros divinos e receber-lhes os programas de trabalho e iluminação, independentemente da técnica do mediunismo que, presentemente, se desenvolve no mundo.
Não há privilegiado na Criação. Existem, sim, os trabalhadores fiéis, compensados com justiça, seja onde for.
Fortemente emocionado com as observações ouvidas, senti que o meu pensamento se perdia num mar de novas e abençoadas ilações.


[1] Fonte: Missionário da Luz, Ditado pelo Espírito André Luiz, psicografia de Francisco Cândido Xavier, Editora FEB, Capitulo 5