Após
alguns minutos de conversação encantadora, o Irmão Francisco acercou-se do
orientador, indagando sobre os objetivos da reunião da noite.
-
Sim - esclareceu Alexandre, afável -, teremos algum trabalho de esclarecimento
geral a amigos nossos, relativamente a problemas de mediunidade e psiquismo,
sem minúcias particulares.
-
Se nos permite - tornou o interlocutor -, estimaria trazer alguns companheiros
que colaboram freqüentemente conosco. Seria para nós grande satisfação vê-los
aproveitando os minutos de sono físico.
-
Sem dúvida. Destina-se o serviço de hoje... Preparação de cooperadores nossos,
ainda encarnados na Crosta. Estaremos a sua disposição e receberemos seus
auxiliares com alegria.
Francisco
agradeceu sensibilizado e perguntou:
-
Poderemos providenciar?
-
Imediatamente - explicou o instrutor, sem hesitação – conduza os amigos ao
sítio de seu conhecimento.
Afastou-se
o grupo de socorristas, deixando-me verdadeiro mundo de pensamentos novos.
Segundo informações anteriores, Alexandre dirigiria, naquela noite, pequena
assembléia de estudiosos e, assim que nos vimos a sós, explicou-me, solícito:
-
Nosso núcleo de estudantes terrestres já possui certa expressão numérica; no
entanto, faltam-lhe determinadas qualidades essenciais para funcionar com pleno
proveito. Em vista disso, imprescindível dotar os companheiros de conhecimentos
mais construtivos.
E,
como julgasse útil fornecer-me informações pessoais destinadas a minha própria
elucidação acrescentou, gentilmente:
-
E os irmãos que comparecem - Indaguei curioso – conservam a recordação integral
dos serviços partilhados, de estudos levados a efeito e observações ouvidas?
Alexandre
pensou um momento e considerou:
-
Mais tarde, a experiência mostrará você como é reduzida à capacidade sensorial.
O homem eterno guarda a lembrança completa, e conserva consigo; todos os
ensinamentos, intensificando-os e valorizando-os, de acordo com o estado
evolutivo que lhe é próprio. O homem físico, entretanto, escravo de limitações
necessárias, não pode ir tão longe. O cérebro de carne, pelas injunções da luta
a que o Espírito foi chamado a viver, é aparelho de potencial reduzido,
dependendo muito da iluminação de seu detentor, no que se refere à fixação de
determinadas bênçãos divinas. Desse modo, André, o arquivo de semelhantes
reminiscências, no livro temporário das células cerebrais, é muito diferente
nos discípulos entre si, variando de alma para alma. Entretanto, cabe-me
acrescentar que, na memória de todos os irmãos de boa vontade, permanecerá, de
qualquer modo, o benefício, ainda mesmo que eles, no período de vigília, não
consigam positivar a origem. As aulas, no teor daquela a que você assistirá
nesta noite, são mensageiras de inexprimíveis utilidades práticas. Em
despertando, na Crosta, depois delas, os aprendizes experimentam alívio,
repouso e esperança, a par da aquisição de novos valores educativos. É certo
que não podem reviver os pormenores, mas guardarão a essência, sentindo-se
revigorados, de inexplicável maneira para eles, não só a retomar a luta diária
no corpo físico, mas também a beneficiar o próximo e combater, com êxito, as
próprias imperfeições. Seus pensamentos tornam-se mais claros, os sentimentos
mais elevados e as preces mais respeitosas e produtivas, enriquecendo-se-lhes
as observações e trabalhos de cada dia.
-
É lastimável - disse eu, valendo-me de pausa mais longa - que todos os membros
do grupo não possam frequentar, em massa, as instruções dessa natureza. Seria
de extraordinária significação o ato de se congregarem mais de trezentas
pessoas para os mesmos fins santificantes, recebendo, em conjunto, sublimes bênçãos
de iluminação.
-
Sem dúvida - redarguiu o orientador, no otimismo de sempre.
-
No entanto, não podemos violentar ninguém. Toda elevação representa uma subida
e toda subida pede esforço de ascensão. Se os nossos amigos não se aproveitam
da força que lhes é peculiar, se menosprezam os seus próprios direitos divinos,
por olvidarem e por vezes detestarem os sagrados deveres que o Pai lhes
confiou, como operar por eles, se constitui lei primordial da vida a realização
divina e eterna para cada um de nós?
A
observação era profunda e indiscutível.
Há
esse tempo, defrontáramos vasto edifício que impressionava pelas linhas
modestas, embora transbordantes de luz.
-
Vamos agora ao trabalho! - convocou Alexandre, resoluto.
-
Mas - objetei por minha vez - não se efetuarão as aulas, na sede do agrupamento
onde se processam os serviços a seu cargo?
-
Se o trabalho - respondeu ele, atencioso - fosse puramente consagrado às
entidades libertas do corpo material, poderíamos desenvolver os nossos
esforços, ali mesmo, com o maior êxito, mas, no presente caso, devemos atender
a irmãos ainda encarnados, que vêm até nós em condições especialíssimas, e
precisamos aproveitar os recursos magnéticos dos amigos que ainda se encontram igualmente
em luta na Terra.
E
chegados diante da porta de entrada, onde se movimentava grande número de
companheiros de nosso plano, o instrutor explicou:
-
Temos aqui uma nobre instituição espiritista, a serviço dos necessitados, dos
tristes, dos sofredores. O sagrado espírito de família evangélica permanece
vivo nesta casa de amor cristão que o Espiritismo ergueu, por intermédio de uma
venerável missionária do Cristo. Nossos trabalhos se desdobrarão aqui com mais eficiência,
relativamente aos fins a que se destinam.
-
Como é interessante - acentuei - o fato de necessitarmos dos ambientes
domésticos para instruções aos companheiros encarnados!
-
Sim - comentou Alexandre, com elevada sabedoria -, você não pode esquecer que
grandes ensinamentos do próprio Mestre foram ministrados no seio da família. A
primeira instituição visível do Cristianismo foi o lar pobre de Simão Pedro, em
Cafarnaum.
Uma
das primeiras manifestações de Nosso Senhor, diante do povo, foi à
multiplicação das alegrias familiares, numa festa de núpcias em pleno aconchego
do lar. Muitas vezes visitou Jesus as casas residenciais de pecadores
confessos, acendendo novas luzes nos corações. A última reunião com os
discípulos verificou-se no cenáculo doméstico. O primeiro núcleo de serviço
cristão em Jerusalém foi ainda à moradia simples de Pedro, então transformado em
baluarte inexpugnável da nova fé. Inegavelmente, todo templo de pedra,
dignamente superintendido, funciona qual farol no seio das sombras, indicando
os caminhos retos aos navegantes do mundo, mas não podemos esquecer que o
movimento vital das idéias e realizações baseia-se na igreja viva do espírito,
no coração do povo de Deus. Sem adesão do sentimento popular, na esfera da
crença vivida no âmago de cada um qualquer manifestação religiosa reduz-se a
mero culto externo. Por isso mesmo.
André,
no futuro da Humanidade, os templos materiais do Cristianismo estarão transformados
em igrejas-escolas, igrejas-orfanatos, igrejas-hospitais, onde não somente o
sacerdote da fé veicule a palavra de interpretação, mas onde a criança encontre
arrimo e esclarecimento, o jovem a preparação necessária para as realizações
dignas do caráter e do sentimento, o doente o remédio salutar, o ignorante a
luz, o velho o amparo e a esperança. O Espiritismo evangélico é também o grande
restaurador das antigas igrejas apostólicas, amorosas e trabalhadoras. Seus
intérpretes fiéis serão auxiliares preciosos na transformação dos parlamentos teológicos
em academias de espiritualidade, das catedrais de pedra em lares acolhedores de
Jesus.
Daria
tudo o que estivesse ao meu alcance para continuar ouvindo as encantadoras
elucidações do orientador, mas, nesse instante, transpúnhamos o limiar.
Verifiquei
que faltavam apenas cinco minutos para duas horas da madrugada.
Pelo
grande número de entidades que vieram céleres, ao nosso encontro, percebi que
havia enorme interesse em torno da palestra instrutiva da noite. Não se achavam
presentes apenas os aprendizes ligados ao esforço de Alexandre, em sentido
direto, mas também outros amigos, trazidos até ali por afeiçoados do plano
espiritual.
Acercou-se
de nós, com mais intimidade, pequeno grupo de companheiros, destacando-se um
deles que conversou com Alexandre, de maneira mais significativa.
-
Ainda não chegaram todos? - indagou O instrutor, com interesse afetivo, após
trocarem as primeiras impressões.
Percebi
claramente que se referia aos irmãos encarnados que deveriam comparecer na cota
de freqüência do grupo de que era ele um dos diretores espirituais.
-
Faltam-nos apenas dois companheiros - elucidou o interpelado.
-
Até o momento, Vieira e Marcondes ainda não chegaram.
-
Urge iniciar os trabalhos - exclamou Alexandre, sem afetação - devemos terminar
a tarefa às quatro horas no máximo.
E,
mostrando singular interesse de amigo, acrescentou:
-
Quem sabe se foram vítimas de algum acidente? Convém positivar no espírito de
calma decisão que lhe é característico, recomendou ao auxiliar que lhe prestava
informações:
-
Sertório, enquanto vou ultimar algumas providências para as instruções da
noite, observe o que se passa.
Respeitoso,
o subordinado interrogou:
-
Caso estejam os nossos irmãos sob a influência de entidades criminosas, como
devo proceder?
-
Deixá-los-á, então, onde estiverem - replicou o instrutor, resoluto -; o
momento não comporta grandes conversações com os que se prendem,
deliberadamente, ao plano inferior. Findo o trabalho, você mesmo providenciará
os recursos que se façam necessários.
Dispunha-se
o mensageiro a partir, quando o orientador, percebendo-me o ardente interesse
em acompanhá-lo, acrescentou:
-
Se deseja, André, poderá seguir, colaborando com o emissário em serviço,
Sertório terá prazer em sua companhia.
Agradeci
extremamente satisfeito e abracei o auxiliar de Alexandre, que me sorriu
acolhedoramente.
Saímos.
Era
indispensável atender o mandado com presteza; todavia, satisfazendo-me a
curiosidade, Sertório explicou generoso:
-
Quando encarnados, na Crosta, não temos bastante consciência dos serviços
realizados durante o sono físico; contudo, esses trabalhos são inexprimíveis e
imensos. Se todos os homens prezassem seriamente o valor da preparação
espiritual, diante de semelhante gênero de tarefa, certo efetuariam as
conquistas mais brilhantes, nos domínios psíquicos, ainda mesmo quando ligados aos
envoltórios inferiores. Infelizmente, porém, a maioria se vale, inconscientemente,
do repouso noturno para sair à caça de emoções frívolas ou menos dignas. Relaxam-se
as defesas próprias, e certos impulsos, longamente sopitados durante a vigília,
extravasam em todas as direções, por falta de educação espiritual,
verdadeiramente sentida e vivida.
Interessado
em esclarecimentos completos. Indaguei:
-
Entretanto, isto ocorre com aprendizes de cursos avançados do Espiritualismo?
Poderiam ser vítimas desses enganos alunos de um instrutor da ordem de
Alexandre?
-
Como não? - tornou Sertório, fraternalmente. - Com referência a essa
probabilidade, não tenha qualquer dúvida.
Quantos
pregam a Verdade, sem aderirem intimamente a ela?
Quantos
repetem fórmulas de esperança e paz, desesperando e perseguindo, no fundo do
coração?
Há
sempre muitos "chamados" em todos os setores de construção e
aprimoramento do mundo! Os "escolhidos",
Contudo,
são sempre poucos.
Completando
o pensamento, como a escoimá-lo de qualquer falsa noção de particularismos na
obra divina, Sertório acrescentou:
-
E precisamos reajustar nossas definições sobre os "escolhidos".
Os
companheiros assim classificados não são especialmente favorecidos pela graça
divina, que é sempre a mesma fonte de bênçãos para todos. Sabemos que a
"escolha", em qualquer trabalho construtivo, não exclui a
"qualidade", e se o homem não oferece qualidade superior para o
serviço divino, em hipótese alguma deve esperar a distinção da escolha.
Infere-se, pois, que Deus chama todos os filhos à cooperação em sua obra
augusta, mas somente os devotados, persistentes, operosos e fiéis constroem qualidades
eternas que os tornam dignos de grandes tarefas. E, reconhecendo-se que as
qualidades são frutos de construções nossas, nunca poderemos esquecer que a
escolha divina começará pelo esforço de cada um.
A
tese do companheiro era assaz interessante e educativa, mas havíamos atingido
pequeno edifício, em frente do qual Sertório se deteve e falou:
-
É a residência de Vieira. Vejamos o que se passa.
Acompanhei-o
em silêncio.
Em
poucos instantes, encontrávamos-nos dentro de quarto confortável, onde dormia um
homem idoso, fazendo ruído singular.
Via-se-lhe,
perfeitamente, o corpo perispirítico unido à forma física, embora parcialmente
desligados entre si. Ao seu lado, permanecia uma entidade singular, trajando
vestes absolutamente negras. Notei que o companheiro adormecido permanecia sob impressões
de doloroso pavor. Gritos agudos escapavam-lhe da garganta. Sufocava-se,
angustiadamente, enquanto a entidade escura fazia gestos que eu não conseguia
compreender.
Sertório
acercou-se de mim e observou:
-
Vieira está sofrendo um pesadelo cruel.
E
indicando a entidade estranha:
-
Creio que ele terá atraído até aqui o visitante que o espanta.
Com
efeito, muito delicadamente, o meu interlocutor começou a dialogar com a
entidade de luto:
-
O amigo é parente do companheiro que dorme?
-
Não, não. Somos conhecidos velhos.
E.
muito impaciente, acentuou:
-
Hoje, à noite, Vieira me chamou com as suas reiteradas lembranças e acusou-me
de faltas que não cometi, conversando levianamente com a família. Isso, como é
natural, desgostou-me.
Não
bastará o que tenho sofrido, depois da morte?
Ainda
precisarei ouvir falsos testemunhos de amigos maledicentes?
Não
poderia esperar dele semelhante procedimento, em virtude das relações afetivas
que nos uniam as famílias, desde alguns anos. Vieira foi sempre pessoa de minha
confiança. Em razão da surpresa, deliberei esperá-lo nos momentos de sono, a
fim de prestar-lhe os necessários esclarecimentos.
O
estranho visitante. Todavia, fez uma pausa, sorriu irônico, e continuou:
-
Entretanto, desde o momento em que me pus a explicar-lhe a situação do passado,
informando-o quanto aos verdadeiros móveis de minhas iniciativas e resoluções
na vida carnal, para que não prossiga caluniando-me o nome, embora sem
intenção, Vieira fez este rosto de pavor que estão vendo e parece não desejar
ouvir as minhas verdades.
Interessado
nas lições novas, aproximei-me do amigo, cujo corpo descansava em posição
horizontal, e senti-lhe o suor frio ensopando os lençóis.
Não
revelava compreender convenientemente o auxílio que lhe era trazido,
fixando-nos com estranheza e ansiedade, intensificando, ainda mais, os gemidos
gritantes que lhe escapavam da boca.
Sentindo
a silenciosa reprovação de Sertório, o habitante das zonas inferiores
dirigiu-lhe a palavra de modo especial:
-
O senhor admite que devamos ouvir impassíveis os remoques da leviandade?
Não
será passível de censura e punição o amigo infiel que se vale das imposições da
morte para caluniar e deprimir?
Se
Vieira sentiu-se no direito de acusar-me, desconhecendo certas particularidades
dos problemas de minha vida privada, não é justo que me tolere os
esclarecimentos até ao fim?
Não
sabe ele, acaso que os mortos continuam vivos? Ignorará, porventura, que a
memória de cada companheiro deve ser sagrada?
Ora
esta! Eu mesmo já lhe ouvi, em minha nova condição de desencarnado, longas
dissertações referentes ao respeito que devemos uns aos outros... Não
considera, pois, que tenho motivos justos para exigir um legítimo entendimento?
O
interpelado esboçou um gesto de complacência e observou:
-
Talvez esteja com a razão, meu caro. Entretanto, creio deva desculpar seu
amigo!
Como
exigir dos outros conduta rigorosamente correta, se ainda não somos criaturas
irrepreensíveis?
Tenha
calma, sejamos caridosos uns para com os outros!...
E,
enquanto a entidade se punha a meditar nas palavras ouvidas.
Sertório
falou-me em tom discreto:
-
Vieira não poderá comparecer esta noite aos trabalhos.
Não
pude reprimir a má impressão que a cena me causava e, talvez porque eu fizesse
um olhar suplicante, advogando a causa do pobre irmão, quase a desencarnar-se
de medo, o auxiliar de Alexandre prosseguiu:
-
Retirar violentamente a visita, cuja presença ele próprio propiciou, não é
tarefa compatível com as minhas possibilidades do momento. Mas podemos socorrê-lo,
acordando-o.
E,
sem pestanejar, sacudiu o adormecido, energicamente, gritando-lhe o nome com
força.
Vieira
despertou confuso, estremunhando, sob enorme fadiga, e ouvi-o exclamar,
palidíssimo:
-
Graças a Deus, acordei! Que pesadelo terrível!...
Será
crível que eu tenha lutado com o fantasma do velho Barbosa? Não! Não posso
acreditar!...
Não
nos viu, nem identificou a presença da entidade enlutada, que ali permaneceu
até não sei quando. E, ao retirarmo-nos, ainda lhe notei as interrogações
íntimas, indagando de si mesmo sobre o que teria ingerido ao jantar, tentando
justificar o susto cruel com pretextos de origem fisiológica. Longe de
auscultar a própria consciência, com respeito à maledicência e à leviandade,
procurava materializar a lição no próprio estômago, buscando furtar-se à realidade.
Sertório,
porém, não me proporcionou ensejo a maiores reflexões.
Convocando-me
ao dever imediato, acrescentou:
-
Visitemos o Marcondes. Não temos tempo a perder.
Daí
a dois minutos, penetrávamos outro apartamento privado; todavia, o quadro agora
era muito mais triste e constrangedor.
Marcondes
estava, de fato, ali mesmo, parcialmente desligado do corpo físico, que
descansava com bonita aparência, sob as colchas rendadas. Não se encontrava ele
sob impressões de pavor, como acontecia ao primeiro visitado; entretanto,
revelava a posição de relaxamento, característica dos viciados do ópio. Ao seu lado,
três entidades femininas de galhofeira expressão permaneciam em atitude menos
edificante.
Vendo-nos,
de súbito, o dono do apartamento surpreendeu-se, de maneira indisfarçável,
mormente cm fixando Sertório, que era de seu mais antigo conhecimento.
Levantou-se, envergonhado, e ensaiou algumas explicações com dificuldade:
-
Meu amigo - começou a dizer, dirigindo-se ao auxiliar de Alexandre -, já sei
que vem procurar-me... Não sei como esclarecer o que ocorre...
Não
pôde, contudo, prosseguir e mergulhou a cabeça nas mãos, como se desejasse
esconder-se de si mesmo.
A
essa altura da cena constrangedora, verifiquei, então, sem vislumbres de
dúvida, que as entidades visitantes eram da pior espécie, de quantas conhecia
eu nas regiões das sombras.
Irritadas
talvez com o recuo do companheiro, que se revelava triste e humilhado,
prorromperam em grande algazarra, acercando-se mais intensamente de nós, sem o
mínimo respeito.
-
Impossível que nos arrebatem Marcondes! - disse uma delas, enfaticamente, -
Afinal de contas, vim de muito longe para perder meu tempo assim, sem mais nem
menos!
-
Ele mesmo nos chamou para a noite de hoje - exclamou a segunda, atrevidamente -
e não se afastará de modo algum.
Sertório
ouvia com serenidade, evidenciando íntima compaixão.
A
terceira entidade, que parecia reter instintos inferiores mais completos,
aproximou-se de nós com terrível expressão de sarcasmo e falou, dando-me a
entender que aquela não era a primeira vez que Sertório procurava o sitio para
os mesmos fins e nas mesmas circunstâncias:
-
Os senhores não passam de intrusos. Marcondes é fraco, deixando-se impressionar
pela presença de ambos. Nós, todavia, faremos a reação. Não conseguirão
arrancar-nos o predileto.
E
gargalhando, irônica, acentuava:
-
Também temos um curso de prazer. Marcondes não se afastará.
Contrariamente
aos meus impulsos, Sertório não demonstrava a mínima atenção. As palavras e
expressões daquela criatura, porém, irritavam-me.
Ao
meu lado, o auxiliar de Alexandre mantinha-se extremamente bondoso. A própria
vítima permanecia humilde e triste.
Porque
semelhantes insultos?
Ia
responder alguma coisa, no sentido de esclarecer o caso em termos precisos,
quando Sertório me deteve:
-
André, contenha-se! Um minuto de conversação atenciosa com as tentações
provocadoras do plano inferior pode induzir-nos a perder um século.
Em
seguida, com invejável tranqüilidade, dirigiu-se ao interessado, perguntando,
sem espírito de censura:
-
Marcondes, que contas darei hoje de você, meu amigo?
O
interpelado respondeu, lacrimoso e humilhado:
-
Oh, Sertório, como é difícil manter o coração nos caminhos retos! Perdoe-me...
Não sei como isto aconteceu... Não posso explicar-me!
Mas
Sertório parecia pouco disposto a cultivar lamentações e mostrando-se muito
interessado em aproveitar o tempo, interrompeu-o:
-
Sim. Marcondes. Cada qual escolhe as companhias que prefere.
Futuramente
você compreenderá que somos seus amigos leais e que lhe desejamos todo o bem.
Despejaram
nas mulheres nova série de frases ridicularizadoras.
Marcondes
começou, de novo, a lastimar-se, mas o mensageiro de Alexandre, sem hesitar,
tomou-me a destra e regressamos à via pública.
-
Voltemos imediatamente - disse ele, decidido.
-
E em que ficamos? - indaguei - não vai acordá-lo?
-
Não. Não podemos agir aqui do mesmo modo. Marcondes deve demorar-se em tal
situação, para que amanhã a lembrança desagradável seja mais duradoura,
fortificando-lhe a repugnância pelo mal.
-
Que fazer, então? - perguntei, espantado.
-
Diremos ao nosso orientador o que ocorre - redarguiu Sertório, calmamente - é o
que nos cabe levar a efeito.
E,
sintetizando longas considerações que poderia expender relativamente ao
assunto, frisou:
-
Por agora, André, chama-nos o dever mais alto, no campo de nossa jornada para
Deus. Entretanto, quando terminarem as instruções da noite, voltarei a ver o
que é possível efetuar em favor de nossos pobres amigos. No momento, não
devemos perder os minutos. As preleções de Alexandre não se destinam somente ao
preparo dos nossos irmãos que ainda se ligam aos envoltórios de carne, na
superfície da Crosta; são igualmente valiosas para nós outros, que necessitamos
enriquecer possibilidades para socorrer, com êxito, os companheiros encarnados.
-
Sim, concordo - respondi. - No entanto, a situação de Vieira e Marcondes
sensibiliza-me fundamente.
Sertório,
porém, cortou-me a palavra, rematando, seguro de si mesmo:
-
Conserve seu sentimento, que é sagrado; não se arrisque, porém, a
sentimentalismo doentio. Esteja tranqüilo quanto à assistência, que não lhes
faltará no momento oportuno; não se esqueça, porém, de que, se eles mesmos
algemaram o coração em semelhantes cárceres, é natural que adquiram alguma
experiência proveitosa à custa do próprio desapontamento.
[1] Fonte: Missionário da Luz, Ditado pelo Espírito André Luiz, psicografia
de Francisco Cândido Xavier, Editora FEB, Capitulo 8
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