domingo, 19 de julho de 2020

POR AMOR A JESUS

POR AMOR A JESUS[1]

 

O dia fora estafante.

As atividades da Casa tiveram início pela Alva com a leva de enfermos, que chegaram, suplicando ajuda, e terminaram, noite adentro, com alguns obsidiados que renteavam com a loucura e foram deixados à porta, ao relento...

Aquela era a quadra ardente do verão e a temperatura morna; amolentava mesmo as resistências mais vigorosas.

Conhecida na cidade e nos arredores como o albergue do amor e o recinto da esperança, para a “Casa do Caminho” afluíam os desafortunados de todos os matizes.

Não obstante a escassez de cooperadores, as pessoas não tinham pejo em descarregar sobre os ombros cansados dos operários de Jesus todas as cruzes e problemas que encontravam, encaminhando-lhes os aflitos e necessitados em grupos que se sucediam como ondas contínuas do mar.. .

Sempre haverá esse comportamento entre os homens.

Os desobrigados com os compromissos da solidariedade encaminharão para os lidadores da ação extenuantes novas contribuições de sofrimentos, indiferentes à angústia e ao cansaço dos que se empenham em minimizar a problemática humana.

Aquela temporada se assinalava pelas dores gerais: criancinhas órfãs e velhinhos desvalidos, enfermos e alienados de vário porte chegavam a cada hora, valendo-se dos recursos do amor, da caridade e da abnegação de Pedro, que jamais se escusava.

Somando penas aos trabalhos exaustivos, sem repouso, medravam, aqui e ali, suspeitas infundadas, incompreensões injustificáveis se instalavam entre os poucos colaboradores do “velho pescador”.

Não raro, o amigo dos infelizes sentia-se quase a sós, para atender ao grande número de necessitados ali albergados e aos sucessivos grupos que diariamente rogavam apoio e recolhimento.

Este companheiro admoestava o discípulo, acusando-o de abuso da caridade; aquele o censurava às claras pelo tempo aplicado na assistência aos leprosos, que, segundo ele, deveriam ser liminarmente arrojados à morte, no “vale dos imundos”, em Jerusalém; outros se queixavam da falta de oportunidade para os largos diálogos evangélicos porque Simão estava sempre a braços com os trabalhos cansativos; por fim, afirmavam diversos, que a Casa não sobreviveria, naquelas condições, considerando a possibilidade de as autoridades do Cinéreo mandar fechá-la, por albergar mulheres de vida equivocada, publicamente conhecidas...

Simão ouvia as insinuações malevas, as ingratidões e os sarcasmos indisfarçados em silêncio.

Alguns o tinham na conta de covarde e demonstravam conhecer-lhe a fraqueza das negações.

Pessoas amigas não ocultavam o desagrado ante a programação pesada que o companheiro de Jesus se impunha, convidando sem palavras os demais obreiros à dilatação das forças e da ação na caridade.

Era como se a inconsciência e a irresponsabilidade conspirassem contra o bem, na Casa dedicada ao bem geral.

O apóstolo abnegado, todavia, não se deixava contaminar pelos vapores tóxicos da intriga nem das conversações malsãs.

À medida, porém, que o desgaste físico e mental lhe minava as forças, foi acolhendo, sem o perceber, o vírus do desânimo.

Anotava, aqui e ali, mal-estar, e percebia-se imensamente saudoso da companhia do Mestre, que muito anelava por voltar a fruir.

Quando se fez silêncio nos largos pavilhões humildes onde a dor encontrava lenitivo e as vozes do aturdimento obsessivo silenciaram, Simão assentou-se sob a sombra de vetusta figueira brava esparramada pelo pátio interno da “Casa do Caminho” e recolheu-se em meditação e prece.

A noite agradável fizera-se um álbum natural de recordações.

O discípulo dedicado repassou, mentalmente, as cenas da sua convivência com Jesus desde o primeiro encontro até ao último contato. . .

Parecia-lhe que as evocações se corporificavam, concedendo-lhe nítidas lembranças que lhe orvalhavam os olhos reiteradas vezes.

Constatava, na saudade e na emoção, o quanto amava àquele Amigo!

É certo que Lhe daria a vida.

Não saberia explicar ainda o motivo da fraqueza que o martirizava. . .

Não saíra das últimas recordações em torno do momento da ascensão, quando viu Jesus, transparente e belo, à sua frente.

Desejou traduzir a felicidade daquela hora, explodindo de júbilos, mas o suave e tranqüilo olhar do Amigo que o penetrou, dulcificou-o por dentro, harmonizando-o.

Passado o primeiro instante, e porque não desejasse malbaratar a oportunidade excepcional, Pedro recordou-se das últimas dificuldades experimentadas no trabalho e expô-las em breves palavras, concluindo, entristecido:

— Não são os estranhos, Senhor; a criarem-me impedimentos para o labor crescente, mas, os amigos, os cooperadores...

E desejando dar maior ênfase aos problemas, arrematou:

— Quando a perseguição vem de fora, dos que nos não conhecem, é mais fácil compreendê-los e desculpá-los, porém quando decorre daqueles que vivem conosco e participam da nossa fé, do nosso ideal...

Não conseguiu terminar a frase, porque a voz ficou estrangulada na garganta túrgida.

O Senhor, compreendendo as lutas do discípulo querido, interrogou:

— Pedro, que era o vaso delicado, antes de tomar forma?

— Argila comum, Senhor — respondeu, presto, o interlocutor.

— E a estátua perfeita, — volveu o Mestre — antes do esforço e da dedicação do artista?

— Pedra bruta, Mestre — apressou-se, Simão em responder.

— Tens razão, amigo — aduziu Jesus. — Sem o trabalho consciente nem a arte do oleiro o vaso não se teria formado, permanecendo perdido no barro úmido. . . Não fossem a paciência e a habilidade do escultor, a estátua que dormia na pedra grosseira lá permaneceria sem qualquer beleza ou utilidade.

Fazendo breve pausa, o Mestre prosseguiu:

— Os homens, à semelhança da argila sem forma ou pedra grosseira, aguardam que os cultores dos nobres ideais lhes plasmem beleza e forma, delicadeza e utilidade, vencendo as suas resistências a golpes de paciência, perseverança e fé, até que colimem os objetivos para os quais foram criados pelo Pai.

“Relegá-los à própria ignorância, seria condená-los à inutilidade. Cumpre-nos compreender-lhes a situação, o degrau em que estagiam, no processo da evolução, e ampará-los, mesmo que se neguem às nossas mãos plasmadoras de formas e cultivadoras de bênçãos.

“Além disso, convém considerar que eles são hoje, o que já foste ontem. O tempo e o amor divino cuidaram de ti, através de outros que te alcançaram, cabendo-te, agora, a tarefa de cuidar deles, a fim de que cheguem até onde te encontras...”

Dando margem a que o ouvinte penetrasse o conteúdo profundo das suas palavras, o Senhor silenciou, para logo concluir:

— Se não exercitamos o amor e a caridade com aqueles com quem convivemos, como provaremos os próprios valores, quando chamados a tolerar e a suportar os que nos são desconhecidos?

“Se não nos for possível perseverar com os que jazem no desânimo e nos dificultam a marcha, qual será o nosso comportamento em relação aos que se obstinam contra os nossos propósitos?

“É necessário modificar a visão, diante dos corações e mentes enfermos que constituem os nossos amigos, que gostaríamos se encontrassem em outra situação evolutiva, portanto, de entendimento.

“Auxiliemos, desse modo, aos ingratos ao nosso lado e aos difíceis para conosco, e treinar-nos-emos para os cometimentos mais graves, que nos aguardam no futuro, precedendo à nossa libertação gloriosa.”

Calou-se o Sublime Benfeitor e diluiu-se na noite varrida por leve, perfumada brisa do vale próximo, salpicada de astros fulgurantes.

Simão Pedro compreendeu a mensagem oportuna, levantou-se, e, a partir dali, jamais se permitiu desânimo ou queixa, compreendendo os companheiros da retaguarda da evolução, porém cumprindo com o seu dever até o momento da sua crucificação de cabeça para baixo, em Roma, anos mais tarde, por integral amor a Jesus.



[1] Fonte: Livro – Há flores no caminho – ditado do Espírito Amélia Rodrigues, psicografia de Divaldo Pereira Franco, Ed LEAL, 3.“ edição Capitulo 6


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