ORIGEM
DO BEM E DO MAL
Sendo
Deus o princípio de todas as coisas e sendo toda sabedoria, todo bondade, todo
justiça, tudo o que dele procede há de participar dos seus atributos, porquanto
o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja
ininteligente, mau e injusto. O mal que observamos não pode ter nele a sua
origem.
Se o mal
estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se lhe chame Arimane, quer
Satanás, ou ele seria igual a Deus, e, por conseguinte, tão poderoso quanto
este, e de toda a eternidade como ele, ou lhe seria inferior.
No
primeiro caso,
haveria duas potências rivais, incessantemente em luta, procurando cada uma
desfazer o que fizesse a outra, contrariando-se mutuamente, hipótese esta
inconciliável com a unidade de vistas que se revela na estrutura do Universo.
No
segundo caso,
sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria subordinado. Não podendo existir
de toda a eternidade como Deus, sem ser igual a este, teria tido um começo. Se
for criado, só o poderia ter sido por Deus, que, então, houvera criado o
Espírito do mal, o que implicaria negação da bondade infinita.
Entretanto,
o mal existe
e tem uma causa.
Os males
de toda espécie, físicos ou morais, que afligem a Humanidade, formam duas
categorias que importa distinguir:
·
A
dos males que o homem pode evitar
·
E
a dos que lhe independem da vontade.
Entre os
primeiros, cumpre se incluam os flagelos naturais.
O homem,
cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos
desígnios do Criador; aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade,
dos interesses factícios e convencionais que criou para si mesmo e que não se
compreendem na ordem da Natureza. Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura
mau e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa,
o objetivo, o resultado definitivo.
Pesquisando
a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da sabedoria infinita
e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja
compreensível.
O homem
recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe é possível conjurar,
ou, pelo menos, atenuar os efeitos de todos os flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em
civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma
organização sábia e previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as consequências,
quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, com referência, até, aos
flagelos que têm certa utilidade para a ordem geral da Natureza e para o
futuro, mas que, no presente, causam danos, facultou Deus ao homem os meios de
lhes paralisar os efeitos.
Assim é
que ele saneia as regiões insalubres, imuniza contra os miasmas pestíferos,
fertiliza terras áridas e se indústria em preservá-las das inundações; constrói
habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem aos ventos tão necessários
à purificação da atmosfera e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim,
finalmente, que, pouco a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio
das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o seu
próprio bem-estar.
Tendo o
homem que progredir, os males a que se acha exposto são um estimulante para o
exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais,
incitando-o a procurar os meios de evitá-los. Se ele nada houvesse de temer,
nenhuma necessidade o induziria a procurar o melhor; o espírito se lhe
entorpeceria na inatividade; nada inventaria, nem descobriria. A dor é o
aguilhão que o impede para a frente, na senda do progresso.
Porém, os males mais numerosos são os
que o homem cria pelos seus vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu
egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa
das guerras e das calamidades que estas acarretam, das dissensões, das
injustiças, da opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das
enfermidades.
Deus
promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o bem. Em si mesmo
encontra o homem tudo o que lhe é necessário para cumpri-las.
A consciência lhe traça a rota, a lei divina lhe
está gravada no coração e, ao demais, Deus lhe lembra constantemente por
intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos encarnados que
trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar e, nestes últimos tempos,
pela multidão dos Espíritos desencarnados que se manifestam em toda parte.
Se o homem se conformasse
rigorosamente com as leis divinas, não há duvida de que se poupariam aos mais
agudos males e viveria ditoso na Terra. Se assim procede, é por virtude do seu
livre-arbítrio: sofre então as consequências do seu proceder.
Entretanto,
Deus, todo bondade, Pôs o remédio ao lado do mal, isto é, faz que do próprio
mal saia o remédio. Um momento chega a que o excesso do mau moral se torna
intolerável e impõe ao homem a necessidade de mudar de vida. Instruído pela
experiência, ele se sente compelido a procurar no bem o remédio, sempre por
efeito do seu livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e
porque reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o constrange
a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo modo que o constrangeu
a melhorar as condições materiais da sua existência.
Pode
dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio é a ausência do calor.
Assim como o frio não é um fluido especial, também o mal não é atributo
distinto; um é o negativo do outro. Onde não existe o bem, forçosamente existe
o mal. Não praticar o mal, já é um princípio do bem. Deus somente quer o bem;
só do homem procede o mal. Se na criação houvesse um ser preposto ao mal,
ninguém o poderia evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, tendo
simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as leis divinas, evitá-lo-á sempre
que o queira.
Tomemos
para termo de comparação um fato vulgar. Sabe um proprietário que nos confins
de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia perecer ou ferir-se quem por
lá se aventurasse.
Que faz,
a fim de prevenir os acidentes?
Manda
colocar perto um aviso, tornando defeso ao transeunte ir mais longe, por motivo
do perigo. Ai está à lei, que é sábia e previdente.
Se, apesar
de tudo, um imprudente desatende ao aviso, vai além do ponto onde este se
encontra e sai-se mal, de quem se pode ele queixar, senão de si próprio?
Outro
tanto se dá com o mal: evitá-lo-ia o homem, se cumprisse as leis divinas. Por
exemplo: Deus pôs limite à satisfação das necessidades: desse limite à
saciedade adverte o homem; se este o ultrapassa, fá-lo voluntariamente.
As
doenças, as enfermidades, a morte, que daí pode resultar, provêm da sua
imprevidência,
não de Deus.
Decorrendo,
o mal, das imperfeições do homem e tendo sido este criado por Deus, dir-se-á,
Deus não deixa de ter criado, se não o mal, pelo menos, a causa do mal; se
houvesse criado perfeito o homem, o mal não existiria.
Se fosse
criado perfeito, o homem fatalmente penderia para o bem. Ora, em virtude do seu
livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o bem, nem para o mal.
Quis
Deus que ele ficasse sujeito à lei do progresso e que o progresso resulte do
seu trabalho, a fim de que lhe pertença o fruto deste, da mesma maneira que lhe
cabe a responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. A questão, pois,
consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para o mal.
Estudando-se
todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se que as raízes de umas e
outros se acham no instinto de conservação, instinto que se encontra em toda a
pujança nos animais e nos seres primitivos mais próximos da animalidade, nos
quais ele exclusivamente domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter
ainda o ser nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à medida que a inteligência se
desenvolve, porque esta domina a matéria.
O
Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras fases da sua
existência corpórea, somente a exigências materiais lhe cumpre satisfazer e,
para tal, o exercício das paixões constitui uma necessidade para o efeito da
conservação da espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas, uma vez
saído desse período, outras necessidades se lhe apresentam a princípio
semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais.
É então
que o Espírito exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela
senda providencial que se lhe acha traçada e se aproxima do seu destino final.
Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se e se identifica
com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem, porque era uma
necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não só porque já não
constitui uma necessidade, como porque se torna prejudicial à espiritualização
do ser. Muita coisa, que é qualidade na criança, torna-se defeito no adulto. O
mal e, pois, relativo e a responsabilidade é proporcionada ao grau de
adiantamento.
Todas as paixões têm, portanto, uma
utilidade providencial, visto que, a não ser assim, Deus teria feito coisas
inúteis e, até, nocivas.
No abuso é que reside o mal e o homem abusa em virtude do seu
livre-arbítrio.
Mais
tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, livremente escolhe entre o bem e
o mal.
Livro:
A Gênese, Allan Kardec, Edit. LAKE, cap. 3 itens 1 ao 10.